terça-feira, 17 de novembro de 2009

SULIAN




SULIAN

A veia sobressaía em todo o longo caminho translúcido, pulsando soberana, que aos dedos calejados e finos acenavam imperiosas pelo toque.Envoltos pelo ameno frio ainda sem neve de abril,não era como em Kosovo que o frio corroia os ossos e o que havia dentro deles,a veia guardava a hemorragia dos amantes que por sua vez diluía o eco de uma história,de umas almas,de outras tantas notas,pulsando naquela pele de soneto.Seu desejo em meus ouvidos assim, em vapores de volúpia, o torpor profundo que aqueles dedos causavam não me deixavam dúvidas da conexão ancestral que sempre nos uniu.A convicção de que o depois daquele instante era morte me fazia subvertê-lo ainda mais.Éramos o desvio, o páthos na utopia daquele instante.Jamais saberiam o inteiro teor dessa relação, a marca de seus dedos fossilizada em minha carne guardada até o último dos meus fôlegos, latejava por esse instante que jamais poderia supor que ocorreria novamente nessa vida.As notas que me acompanharam desde sua partida, povoavam a atmosfera forjando sua presença etérea em devaneios abissais.E dessa forma, ia rastejando pela existência mas por medo de parar do que por vontade própria,sem saber se a morte o havia surrupiado de mim.Em Prístina,nossa gente cada vez mais era cercada e torturada, e você tido como morto.Os malditos bradaram sua morte como vitória dos imundos.Desterrada como alma que paira sem sentido, percorri as prisões e hospitais,nossos irmãos contactaram as fontes, mas só acharam pedaços de suas roupas e essa partitura com suas notas.Elas eram a única coisa que alimentava meu espírito de libertação.E eu as repetia compulsivamente ao piano,isolada, descarnada.Não podia mais freqüentar a escola de música,era perigoso para mim.Meu delírio me compelia a tocar, convulsionando-me para que assim ao menos a ilusão de sua presença voltasse a me visitar.Não havia mais dias, nem noites,o tempo foi suspenso para que eu somente tocasse e convivesse nessa dimensão paralela entre nós.Além de qualquer entendimento racional, eu compunha minha ópera que era a nossa transmutação.Até que aquela notícia reteve-me ao mundo real e a constatação de que era você o suposto pianista mudo provocou em mim uma sensação que ultrapassa o sentido humano de percepção, o engasgo de vida recobrou minhas cores e minha vivacidade.Sem pestanejar, fui ao seu encontro.São poucos que podem sentir esse sopro.À viagem no barco clandestino eu me apegava à ópera que havia composto em nosso nome, tinha a impressão que meu espírito ansiava por esse reencontro desde o início das eras.No momento em que te revi na hospital, emudecido e tocando, um pouco mais corado, todo o resto do trajeto se olvidou da memória.Seus olhos inquietos , de grandes cílios me acenando como em código de silêncio foram o bastante para entender todo o resto.Eles jamais saberiam, e o único sopro de vida latejava nesse momento, o depois é farsa e morte.


ISA ALVES 9/11 às 8:10 a.m.

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