domingo, 28 de março de 2010

A CRIATURA







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O tapete de lodo nicotizado estendia-se por todo ambiente. As fumaças embotavam os rostos e os odores que exalavam dos corpos incitavam excessos. Excessos, ela era dos excessos. Defendia a filosofia  segundo a qual pecar por excesso tornava o pecado mais sincero e talvez até a redimisse. Mas não, não queria que a redimissem do seu próprio grito, pois a cada pecado que cometia suplicava para ser ouvida ansiando para que algum dia alguém a revelasse, pois ela mesma tinha medo se olhar no espelho, por isso se pintava daquele jeito, como se estivesse se mascarando de si mesma.
Parecia que nessas noites de luxúria se transmutava e  tinha-se a impressão de que todos os seus atos eram minimamente arquitetados com os objetivos mais sórdidos em mente. A beleza exótica roçava cada linha do seu rosto de gueixa e do seu corpo deliciosamente brasileiro. Crua, não se poupava, sabia ser provocante despertando instintos que normalmente mascaramos para que a vida em sociedade seja possível, ao menos aparentemente. A língua ferina não perdoava ninguém. Ela possuía a tortuosa intimidade com  as palavras, e essa sina lhe tornava extremamente cáustica.Impossível não ser notada.
Poderia-se facilmente encontrar esse demônio tropical perdido em alguma página da mitologia ocidental, devorando seres impiedosamente e depois cuspindo suas carcaças sem vida. Ela, a síntese de requinte primitivo, uma das criaturas que a modernidade inventou.
O tapete de lodo nicotizado era seu palco. Todas aquelas criaturas febris, sedentas, hedonistas natas(ou fruto de mais algum experimento da modernidade)alimentavam sua fúria e ao mesmo tempo que sentia nojo por todas elas, o prazer de ser desejada devorava-a.
Devorava os seres no intuito de comer suas mentes, na esperança de juntar fragmentos que a ajudassem a entender a existência e assim se livrar da eterna angústia que a acometia. Era uma dor tremenda a do não ser. Latejante.
       Dos vícios humanos ela sabia quase todos, aqueles que escondemos até de nós mesmos com medo do buraco da fechadura. Mas não tinha medo, farejava todos os nãos das suas cobaias até lhes arrancar as tripas.E depois desse processo a dor que sentia era lancinante,chegava a pensar que sem cura.Por que ela sentia tanto pela sordidez da sua própria humanidade, não sabia explicar e aí que sentia mais dor.
        Durante o dia, os espelhos da sua casa eram retirados. Não suportava se ver sob a luz do sol, tinha vergonha do dia, era uma criatura forjada pela luz da lua e pela morbidez de um quarto escuro da suíte de algum hotel de luxo.
         Pensariam os hipócritas que essa é uma criação sórdida da minha mente de escritor arruinado,não se enganem , numa noite de vazio insondável, encontrei-a num café escolhendo uns livros, com tamanha paixão que desejei que o meu  estivesse perdido por ali para que ela o encontrasse.Desde então, frequento o mesmo lugar todos os dias na esperança de encontrá-la novamente, quem sabe não tomamos um café?

 Aysha Santiago 28/03/10 às 19:53

sexta-feira, 26 de março de 2010

CLÓ

CLÓ

Lima Barreto

http://www.spectroeditora.com.br/fonjic/barreto/sonhos/03.php


 Devia ser já a terceira pessoa que lhe sentava à mesa.
  Não lhe era agradável aquela sociedade com desconhecidos; mas que fazer naquela segunda-feira de Carnaval, quando as confeitarias têm todas as mesas ocupadas e as cerimônias dos outros dias desfazem-se, dissolvem-se?
 Se as duas primeiras pessoas eram desajeitados sujeitos sem atrativos, o terceiro conviva resgatava todo o desgosto causado pelos outros. Uma mulher formosa e bem tratada é sempre bom ter-se à vista, embora sendo desconhecida, ou, talvez, por isso mesmo...
Estava ali o velho Maximiliano esquecido, só moendo cismas, bebendo cerveja, obediente ao seu velho hábito. Se fosse um dia comum, estaria cercado de amigos; mas, os homens populares, como ele, nunca o são nas festas populares. São populares a seu jeito, para os freqüentadores das ruas célebres, cafés e confeitarias, nos dias comuns; mas nunca para a multidão que desce dos arrabaldes, dos subúrbios, das províncias vizinhas, abafa aqueles e como que os afugenta. Contudo não se sentia deslocado...
A quinta garrafa já se esvaziara e a sala continuava a encher-se e a esvaziar-se, a esvaziar-se e a encher-se. Lá fora, o falsete dos mascarados em trote, as longas cantilenas dos cordões, os risos e as músicas lascivas enchiam a rua de sons e ruídos desencontrados e, dela, vinha à sala uma satisfação de viver, um frêmito de vida e de luxúria que convidava o velho professor a ficar durante mais tempo bebendo, afastando o momento de entrar em casa.
 E esse frêmito de vida e luxúria que faz estremecer a cidade nos três dias de sua festa clássica, naquele momento, diminuía-lhe muito as grandes mágoas de sempre e, sobretudo, aquela teimosia e pequenina de hoje. Ela o pusera assim macambúzio e isolado, embora mergulhado no turbilhão de riso, de alegria, de rumor, de embriaguez e luxúria dos outros, em segunda-feira gorda. O "jacaré" não dera e muito menos a centena. Esse capricho da sorte tirava-lhe a esperança de um conto e pouco - doce esperança que se esvaía amargosamente naquele crepúsculo de galhofa e prazer.
 E que trabalho não tivera ele, doutor Maximiliano, para fazê-la brotar no seu peito, logo nas primeiras horas do dia! Que chusmas de interpretações, de palpites, de exames cabalísticos! Ele bem parecia um áugure romano que vem dizer ao cônsul se deve ou não oferecer batalha...
  Logo que ela lhe assomou aos olhos, como não lhe pareceu certo aquele navegar precavido dentro do nevoento mar do Mistério, marcando rumo para aquele ponto - o "jacaré" - onde encontraria sossego, abrigo, durante alguns dias!
  E agora, passado o nevoeiro, onde estava?... Estava ainda em mar alto, já sem provisões quase, e com débeis energias para levar o barco a salvamento... Como havia de comprar bisnagas, confetes, serpentinas, alugar automóvel? E - o que era mais grave - como havia de pagar o vestido de que a filha andava precisada, para se mostrar sábado próximo, na rua do Ouvidor, em toda a plenitude de sua beleza, feita (e ele não sabia como) da rija camadura de Itália e de uma forte e exótica exalação sexual... Como havia de dar-lhe o vestido?
  Com aquele seu olhar calmo em que não havia mais nem espanto, nem reprovação, nem esperança, o velho professor olhou ainda a sala tão cheia, por aquelas horas, tão povoada e animada de mocidade, de talento e de beleza. Ele viu alguns poetas conhecidos, quis chamá-los, mas, pensando melhor, resolveu continuar só.
  O velho doutor Maximiliano não cansou de observar, um por um, aqueles homens e aquelas mulheres, homens e mulheres cheios de vícios e aleijões morais; e ficou um instante a pensar se a nossa vida total, geral, seria possível sem os vícios que a estimulavam, embora a degradem também.
  Por esse tempo, então, notou ele a curiosidade e a inveja com que um grupo, de modestas meninas dos arrabaldes, examinava a toilette e os ademanes das mundanas presentes.
  Na sua mesa, atraindo-lhes os olhares, lá estava aquela formosa e famosa Eponina, a mais linda mulher pública da cidade, produto combinado das imigrações italiana e espanhola, extraordinariamente estúpida, mas com um olhar de abismo, cheio de atrações, de promessas e de volúpia.
  E o velho lente olhava tudo aquilo pausadamente, com a sua indulgência de infeliz, quando lhe veio o pensar na casa, naquele seu lar, onde o luxo era uma agrura, uma dor, amaciada pela música, pelo canto, pelo riso e pelo álcool.
  Pensou, então, em sua filha, Clôdia - a Cló, em família - em cujo temperamento e feitio de espírito havia estofo de uma grande hetaira. Lembrou-se com casta admiração de sua carne veludosa e palpitante, do seu amor às danças lúbricas, do seu culto á toilette e ao perfume, do seu fraco senso moral, do seu gosto pelos licores fortes; e, de repente e por instantes, ele a viu coroada de hera, cobrindo mal a sua magnifica nudez, com uma pele mosqueada, o ramo de tirso erguido, dançando, religiosamente bêbeda, cheia de fúria sagrada de hacante: "Evoé! Baco!"
  E essa visão antiga lhe passou pelos olhos, quando a Eponina ergueu-se da mesa, tilintando as pulseiras e berloques caros, chamando muito a atenção de Mme. Rego da Silva que, em companhia do marido e da sua extremosa amiga Dulce, amante de ambos, no dizer da cidade, tomavam sorvetes, numa mesa ao longe.
  O doutor Maximiliano, ao ver aquelas jóias e aquele vestido, voltou a lembrar-se de que o "jacaré" não dera; e refletiu, talvez com profundeza, mas certo com muita amargura, sobre a má organização da nossa sociedade. Mas não foi adiante e procurou decifrar o problema da sua multiplicação em Cló, tão maravilhosa e tão rara. Como é que ele tinha posto no mundo um exemplar de mulher assaz vicioso e delicado como era a filha? De que misteriosa célula sua saíra aquela floração exuberante de fêmea humana? Vinha dele ou da mulher? De ambos?
 Ou de sua mulher só, daquela sua carne apaixonada e sedenta que trepidava quando lhe recebia as lições de piano, na casa dos pais?
 Não pôde, porém, resolver o caso. Aproximava-se o doutor André, com o seu rosto de ídolo peruano, duro, sem mobilidade alguma na fisionomia, acobreada, onde o ouro do aro do pince-nez reluzia fortemente e iluminava a barba cerdosa.
 Era um homem forte, de largos ombros, musculoso, tórax saliente, saltando; e, se bem tivesse as pernas arqueadas, era assim mesmo um belo exemplar da raça humana.
 Lamentava-se que ele fosse um bacharel vulgar e um deputado obscuro. A sua falta de agilidade intelectual, de maleabilidade, de ductílidade, a sua fraca capacidade de abstração e débil poder de associar idéias não impediam fosse ele deputado e bacharel. Ele seria rei, estaria no seu quadro natural, não na câmara, mas remando em ubás ou igaras nos nossos grandes rios ou distendendo aqueles fortes arcos de iri que despejam frechas ervadas com curaro.
 Era o seu último amigo, entretanto o mais constante comensal de sua mesa luculesca.
 Deputado, como já ficou dito, e rico, representava, com muita galhardia e liberalidade, uma feitoria mansa do Norte, nas salas burguesas; e, apesar de casado, a filha do antigo professor, a lasciva Cló, esperava casar-se com ele, pela religião do Sol, um novo culto recentemente fundado por um agrimensor ilustrado e sem emprego.
 O velho Maximiliano nada de definitivo pensava sobre tais projetos; não os aprovava, nem os reprovava. Limitava-se a pequenas reprimendas sem convicção, para que o casamento não fosse efetuado sem a bênção do sacerdote do Sol ou de outro qualquer.
  E se isto fazia, era para não precipitar as cousas; ele gostava dos desdobramentos naturais e encadeados, das passagens suaves, das inflexões doces, e detestava os saltos bruscos de um estado para o outro.
- Então, doutor, ainda por aqui? fez o rico parlamentar sentando-se.
- É verdade, respondeu-lhe o velho. Estou fazendo o meu sacrifício, rezando a minha missa... É a quinta... Que toma, doutor?
- Um "madeira"... Que tal o Carnaval?
- Como sempre.
E, depois, voltando-se para o caixeiro:
- Outra cerveja e um "madeira", aqui, para o doutor. Olha: leva a garrafa.
O caixeiro afastou-se, levando a garrafa vazia e o doutor André perguntou:
- Dona Isabel não veio?
- Não. Minha mulher não gosta das segundas-feiras de Carnaval. Acha-as desenxabidas... Ficaram, ela e a Cló, em casa a se prepararem para o baile á fantasia na casa dos Silvas... Quer ir?
- O senhor vai?
- Não, meu caro senhor; do Carnaval, eu só gosto dessa barulhada da rua, dessa música selvagem e sincopada de recos-recos, de pandeiros, de bombos, desse estridulo de fanhosos instrumentos de metais... Até do bombo gosto, mais nada! Essa barulhada faz-me bem à alma. Não irei... Agora, se o doutor quer ir... Cló vai de preta mina.
- Deve-lhe ficar muito bem... Não posso ir; entretanto, irei á sua casa para ver a sua senhora e a sua filha fantasiadas. O senhor devia também ir...
- Fantasiado?
- Que tinha?
- Ora, doutor! eu ando sempre com a máscara no rosto.
E sorriu leve com amargura; o deputado pareceu não compreender e observou:
- Mas, a sua fisionomia não é tão decrépita assim...
Maximiliano ia objetar qualquer cousa quando o caixeiro chegou com as bebidas, ao tempo em que Mme. Rego da Silva e o marido levantaram-se com a pequena Dulce, amante de ambos, no dizer da cidade em peso.
O paramentar olhou-os bastante com o seu seguro ar de quem tudo pode. Ouviu que ao lado diziam - à passagem dos três: ménage à trois. A sua simplicidade provinciana não compreendeu a maldade e logo dirigiu-se ao velho professor:
-Jantam em casa?
-Jantamos; e o doutor não quer jantar conosco?
- Obrigado. Não me é possível ir hoje... Tenho um compromisso sério... Mas fique certo que, antes de saírem, lá irei tomar um uisquezinho... Se me permite?
- Oh! doutor! O senhor é nosso melhor amigo. Não imagina como todos lá falam no senhor. Isabel levanta-se a pensar no doutor André; Cló, essa, nem se fala! Até o Caçula quando o vê, não late; faz-lhe festas, não é?
- Como isso me cumula de...
- Ainda há dias, Isabel me disse: Maximiliano, eu nunca bebi um Chambertin como esse que o doutor André nos mandou... O meu filho, o Fred, sabe até um dos seus discursos de cor; e, de tanto repeti-lo, creio que sei de memória vários trechos dele.
A face rígida do ídolo, com grande esforço, abriu-se um pouco; e ele disse, ao jeito de quem quer o contrário:
- Não vá agora recitá-lo.
- Certo que não. Seria inconveniente; mas não estou impedido de dizer, aqui, que o senhor tem muita imaginação, belas imagens e uma forma magnífica.
- Sou principiante ainda, por isso não me fica mal aceitar o elogio e agradecer a animação.
Fez uma pausa, tomou um pouco de vinho e continuou em tom conveniente:
- O senhor sabe perfeitamente que espécie de força me prende aos seus... Um sentimento acima de mim, uma solicitação, alguma cousa a mais que os senhores puseram na minha vida...
- Pois então, interrompeu cheio de comoção o doutor Maximiliano: à nossa!
Ergueu o copo e ambos tocaram os seus, reatando o parlamentar a conversa desta maneira:
- Deu aula hoje?
- Não. Desci para espairecer e "cavar". É dura esta vida... "cavar"! Como é triste dizer-se isto! Mas que se há de fazer? Ganha-se uma miséria... Um professor com oitocentos mil-réis o que é? Tem-se a família, representação... uma miséria! Ainda agora, com tantas dificuldades, é que Cló deu em tomar banhos de leite...
- Que idéia! Onde aprendeu isso?
- Sei lá! Ela diz que tem não sei que propriedades, certas virtudes... O diabo é que tenho de pagar uma conta estupenda no leiteiro... São banhos de ouro, é que são! Jogo nos bichos... Hoje tinha tanta fé no "jacaré"...
O caixeiro passava e ele recomendou:
- Baldomero, outra cerveja. O doutor não toma mais um "madeira"?
- Vá lá. Ganhou, doutor?
- Qual! E não imagina que falta me fez!
- Se quer?...
- Por quem é, meu caro; deixe-se disso! Então há de ser assim todo o dia?
- Que tem!... Ora!... Nada de cerimônias; é como se recebesse de um filho...
- Nada disso... Nada disso...
Fingindo que não entendia a recusa, o doutor André foi retirando da carteira uma bela nota, cujo valor nas algibeiras do doutor Maximiliano fez-lhe esquecer em muito a sua desdita no "jacaré".
O deputado ainda esteve um pouco; em breve, porém, se despediu, reiterando a promessa de que iria até à casa do professor, para ver as duas senhoras fantasiadas.
O doutor Maximiliano bebeu ainda uma cerveja e, acabada que foi a cerveja, saiu vagarosamente um tanto trôpego.
A noite já tinha caído de há muito. Era já noite fechada. Os cordões e os bandos carnavalescos continuavam a passar, rufando, batendo, gritando desesperadamente. Homens e mulheres de todas as cores - os alicerces do pais - vestidos de meia, canitares e enduapes de penas multicores, fingindo índios, dançavam na frente ao som de uma zabumbada africana, tangida com fúria em instrumentos selvagens, roufenhos, uns, estridentes, outros. As danças tinham luxuriosos requebros de quadris, uns caprichosos trocar de pernas, umas quedas imprevistas.
Aqueles fantasiados tinham guardado na memória muscular velhos gestos dos avoengos, mas não mais sabiam coordená-los nem a explicação deles. Eram restos de danças guerreiras ou religiosas dos selvagens de onde a maioria deles provinha, que o tempo e outras influências tinham transformado em palhaçadas carnavalescas...
Certamente, durante os séculos de escravidão, nas cidades, os seus antepassados só se podiam lembrar daquelas cerimônias de suas aringas ou tabas, pelo carnaval. A tradição passou aos filhos, aos netos, e estes estavam ali a observá-la com as inevitáveis deturpações.
Ele, o doutor Maximiliano, apaixonado amador de música, antigo professor de piano, para poder viver e formar-se, deteve-se um pouco, para ouvir aquelas bizarras e bárbaras cantorias, pensando na pobreza de invenção melódica daquela gente. A frase, mal desenhada, era curta, logo cortada, interrompida, sacudida pelos rufos, pelo ranger, pelos guinchos de instrumentos selvagens e ingênuos. Um instante, ele pensou em continuar uma daquelas cantigas, em completá-la; e a ária veio-lhe inteira, ao ouvido, provocando o antigo professor de música a fazer parar o 'Chuveiro de Ouro", a fim de ensinar-lhes, aos cantores, o que a imaginação lhe havia trazido à cabeça naquele momento.
Arrependeu-se que tivesse fito gostar daquela barulhada; porém, o amador de música vencia o homem desgostoso. Ele queria que aquela gente entoasse um hino, uma cantiga, um canto com qualquer nome, mas que tivesse regra e beleza. Mas - logo imaginou - para quê? Corresponderia a música mais ou menos artística aos pensamentos íntimos deles? Seria mesmo a expansão dos seus sonhos, fantasias e dores?
E, devagar, se foi indo pela rua em fora, cobrindo de simpatia toda a puerilidade aparente daqueles esgares e berros, que bem sentia profundos e próprios daquelas criaturas grosseiras e de raças tão várias, mas que encontravam naquele vozerio bárbaro e ensurdecedor meio de fazer porejar os seus sofrimentos de raça e de indivíduo e exprimir também as suas ânsias de felicidade.
Encaminhou-se direto para a casa. Estava fechada; mas havia luzes na sala principal, onde tocavam e dançavam.
Atravessou o pequeno jardim, ouvindo o piano. Era sua mulher quem tocava; ele o adivinhava pelo seu velouté, pela maneira de ferir as notas, muito docemente, sem deixar quase perceber a impulsão que os dedos levavam. Como ela tocava aquele tango! Que paixão punha naquela música inferior!
Lembrou-se então dos "cordões", dos "ranchos", das suas cantilenas ingênuas e bárbaras, daquele ritmo especial a elas que também perturbava sua mulher e abrasava sua filha. Por que caminho lhes tinha chegado ao sangue e à carne aquele gosto, aquele pendor por tais músicas? Como havia correlação entre elas e as almas daquelas duas mulheres?
Não sabia ao certo; mas viu em toda a sociedade complicados movimentos de trocas e influências - trocas de idéias e sentimentos, de influências e paixões, de gostos e inclinações.
Quando entrou, o piano cessava e a filha descansava, no sofá, a fadiga da dança lúbrica que estivera ensaiando com o irmão. O velho ainda ouviu indulgentemente o filho dizer:
- É assim que se dança nos Democráticos.
Cló, logo que o viu, correu a abraçá-lo e, abraçada ao pai, perguntou:
- André não vem?
-Virá.
Mas, logo, em tom severo, acrescentou:
- Que tem você com André?
- Nada, papai; mas ele é tão bom...
Quis Maximiliano ser severo; quis apossar-se da sua respeitável autoridade de pai de família; quis exercer o velho sacerdócio de sacrificador aos deuses penates; mas era céptico demais, duvidava, não acreditava mais nem no seu sacerdócio nem no fundamento da sua autoridade. Ralhou, entretanto, frouxamente:
- Você precisa ter mais compostura, Cló. Veja que o doutor André é casado e isto não fica bem.
A isto, todos entraram em explicações. O respeitável professor foi vencido e convencido de que a afeição da filha pelo deputado era a cousa mais inocente e natural deste mundo. Foram jantar. A refeição foi tomada rapidamente. Fred, contudo, pôde dar algumas informações sobre os préstitos camavalescos do dia seguinte. Os Fenianos perderiam na certa. Os Democráticos tinham gasto mais de sessenta contos e iriam pôr na rua uma cousa nunca vista. O carro do estandarte, que era um templo japonês, havia de fazer um "bruto sucesso”. Demais, as mulheres eram as mais lindas, as mais bonitas... Estariam a Alice, a Charlotte, a Lolita, a Cármen...
- Ainda toma muito cloral? perguntou Cló.
- Ainda, retrucou o irmão; e emendou: vai ser uma lindeza, um triunfo, à noite, com luz elétrica, nas ruas largas...
E Cló, por instantes, mordeu os lábios, suspendeu um pouco o corpo e viu-se também, no alto de um daqueles carros, iluminada pelos fogos-de-bengala, recebida com palmas, pelos meninos, pelos rapazes, pelas moças, pelas burguesas e burgueses da cidade. Era o seu triunfo a meta de sua vida; era a proliferação imponderável de sua beleza em sonhos, em anseios, em idéias, em violentos desejos naquelas almas pequenas, sujeitas ao império da convenção, da regra e da moral. Tomou a cerveja, todo o copo de um hausto, limpou a espuma dos lábios e o seu ligeiro buço surgiu lindo sobre os breves lábios vermelhos. Em seguida, perguntou ao irmão:
- E essas mulheres ganham?
- Qual! Você não vê que é uma honra? respondeu-lhe o irmão.
E o jantar acabou sério e familiar, embora a cerveja e o vinho não tivessem faltado aos devotos de cada uma das duas bebidas.
Logo que a refeição acabou, talvez uns vinte minutos após, o doutor André se fazia anunciar. Desculpou-se com as senhoras; não pudera vir jantar, questões políticas, uma conferência... Pedia licença para oferecer aquelas pequenas lembranças de Carnaval. Deu uma pequena caixa a dona Isabel e uma maior à Cló. As jóias saíram dos escrínios e faiscaram orgulhosamente para todos os presentes deslumbrados. Para a mãe, um anel; para a filha, um bracelete.
- Oh, doutor! fez dona Isabel. O senhor está a sacrificar-se e nós não podemos consentir nisto...
- Qual, dona Isabel! São falsas, nada valem... Sabia que dona Clódia ia de "preta mina" e lembrei-me trazer-lhe este enfeite...
Cló agradeceu sorridente a lembrança e a suave boca quis fixar demoradamente o longo sorriso de alegria e agradecimento. E voltaram a tocar. Dona Isabel pôs-se ao piano e, como tocasse depois da sobremesa, hora da melancolia e das discussões transcendentes, como já foi observado, executou alguma cousa triste.
Chegava a ocasião de se prepararem para o baile à fantasia que os Silvas davam. As senhoras retiraram-se e só ficaram, na sala, os homens, bebendo uísque. André, impaciente e desatento; o velho lente, indiferente e compassivo, contando histórias brejeiras, com vagar e cuidado; o filho, sempre a procurar caminho para exibir o seu saber em cousas carnavalescas. A conversa ia caindo, quando o velho disse para o deputado:
- Já ouviu a Bamboula, de Gottschalk, doutor?
- Não... Não conheço.
- Vou tocá-la.
Sentou-se ao piano, abriu o álbum onde estava a peça e começou a executar aqueles compassos de uma música negra de Nova Orleans, que o famoso pianista tinha filtrado e civilizado.
A filha entrou, linda, fresca, veludosa, de pano da Costa ao ombro, trunfa, com o colo inteiramente nu, muito cheio e marmóreo, separado do pescoço modelado, por um colar de falsas turquesas. Os braceletes e as miçangas tilintavam no peito e nos braços, a bem dizer totalmente despidos; e os bicos de crivo da camisa de linho rendavam as raízes dos seios duros que mal suportavam a alvíssima prisão onde estavam retidos.
Ainda pôde requebrar, aos últimos compassos da Bamboula, sobre as chinelas que ocupavam a metade dos pés; e toda risonha sentou-se por fim, esperando que aquele Salomão de pince-nez de ouro lhe dissesse ao ouvido:
"Os teus lábios são como uma fita de escarlate; e o teu falar é doce. Assim como é o vermelho da romã partida, assim é o nácar das tuas faces; sem falar no que está escondido dentro".
O doutor Maximiliano deixou o tamborete do piano e o deputado, bem perto de Clódia, se não falava como o rei Salomão à rainha de Sabá dilatava as narinas para sorver toda a exalação acre daquela moça, que mais capitosa se fazia dentro daquele vestuário de escrava desprezada.
A sala encheu-se de outros convidados e a sessão de música veio a cair na canção e na modinha. Fred cantou e Cló, instada pelo doutor André, cantou também. O automóvel não tinha chegado; ela tinha tempo...
Dona Isabel acompanhou; e a moça, pondo tudo o que havia de sedução na sua voz, nos seus olhos pequenos e castanhos, cantou a "Canção da Preta Mina":
Pimenta de cheiro, jiló, quibombô;
Eu vendo barato, mi compra ioiô!
Ao acabar, era com prazer especial, cheia de dengues nos olhos e na voz, com um longo gozo intimo que ela, sacudindo as ancas e pondo as mãos dobradas pelas costas na cintura, curvava-se para o doutor André e dizia vagamente:
Mi compra ioiô!
E repetia com mais volúpia, ainda uma vez:
Mi compra ioiô!

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Há as horas de consumição produtiva e as horas nas quais é preciso sentar e ouvir a história.Obedientemente.
 Nessas, a inquietude nata dessa que vos fala está sendo empregada para  caçar histórias, diálogos, impressões, dissertações, teses, potocas,enfim, tudo que desperte os sintomas.Como a greve deflagrada legitimamente pela  ilegalidade de um sistema tido por estado democrático de direitos, não auxilia nesse processo, eu vou acumulando potocas desconexas dentro de mim,um monte de asneiras do tipo, nadar nadar e morrer na praia ou fiquei com as calças na mão (nem isso).Com o perdão do bordão chulo, a pipa do vovô não tá subindo mais, vou na casa grande pedir pra ioiô um pouco de lucidez.

Ioiô, traz minha lucidez de volta?


anota-se nesse conto a semelhança com a prosa de Aluísio em O Cortiço.
anotado.

Livro 2:
Memórias de um Sargento de Milícias.




  Aysha San 05:52 26/03/10

segunda-feira, 15 de março de 2010

TRANSVIADA

Juventude Transviada

Lava roupa todo dia, que agonia
Na quebrada da soleira, que chovia
Até sonhar de madrugada, uma moça sem mancada
Uma mulher não deve vacilar
Eu entendo a juventude transviada
E o auxílio luxuoso de um pandeiro
Até sonhar de madrugada, uma moça sem mancada
Uma mulher não deve vacilar
Cada cara representa uma mentira
Nascimento, vida e morte, quem diria
Até sonhar de madrugada, uma moça sem mancada
Uma mulher não deve vacilar
Hoje pode transformar, e o que diria a juventude
Um dia você vai chorar, vejo clara as fantasias
Luiz Melodia
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  Pulsam em mim, no mínimo dois corações, um pro samba outro pra bossa.
Sem contar os desvios.
 Ah dos desvios, abertos bem no meio da traquéia qual pulmão de fumante agonizante ou da  agonia da lavadeira na quebrada da soleira.Deles eu poderia escrever um diário numa página virtual, todo mundo faz isso.Penso que só não chegaria a ser convidada pra Flip.Bem que poderiam escrever um livro de auto ajuda para os próprios escritores, ou aspirantes a.Você que escreve nunca se perguntou como eles chegaram lá?
   Tô precisando de falta de fôlego e como.Mas sinto como o palhaço no fim da festa na qual ele foi pago pra  gargalhar ou o último cajuzinho dessa mesma festa.Sento no canto, pego meu cajuzinho e espero  uma criança me perguntar: Qual é seu verdadeiro nome tio?
  E eles(os corações e os desvios?) tão pulsando aqui agoniados, não tem metáfora não, isso  é real.
  Além de achar que sou transversal, tô com sono e com um pouco do saco cheio.amanhã me explico melhor, pensei até em colocar um certo ritmo sonoro hoje mas acho que não é época de festejar. A juventude é transviada e eu sou transversal alguma semelhança ou mera coincidência?
Bah, tô com dor de estomago também.
Cara, acho que é taquicardia mesmo em dois lugares diferentes.

Aysha Santiago
16/03/010  às 02:46 a.m.









sábado, 6 de março de 2010

ANTIPOESIA da Formação Superior

Obrigação.
de fazer, não fazer, de ter que ir , de lembrar que você tá quase lá. quase.
Puta merda, qual o verdadeiro significado de ter que cumprir uma obrigação?
Tá de saco cheio é? então redija um ensaio com argumentos filosóficos sobre a questão das cotas nas Universidades.valendo 0,5 ponto e olha que a teoria da casualidade de Aristóteles vai cair na prova e não tem nos textos.Putaquilparil eu não vi nenhum dos dias de arguição e eu sinceramente não tenho a menor opinião formada.Não há tempo hábil pra isso, será que dá pra entender que estamos atolados de matérias e conteúdos que no fim não servirão para nada mais profundo? Ah, esqueceu da monografia?
Quer mais? vai lá e faça uma peça sobre execução de alimentos. Uffa, essa eu fiz semestre passado, será que ainda lembro dos cálculos?
Lembrando que corri de novo de Tributário 3 porque poutz, que matéria péla-saco e ainda mais as 8 da matina. No way mesmo. Filosofia geral, essa deve ser legal porém já faltei 3 aulas, não se usa teleconferência não?
Me FORMAR ou me ENFORCAR? eis a questão.

não sei se é medo ou se é saco cheio ou os dois mas isso não tá ajudando minha criação poética ou antipoética.

E tem a exposição da Clarice amanhã, eu NECESSITO.
Aí, manda tudo ir elegantemente à merda e vamos passar férias em Passárgada (só lembro de Passárgada)



Antipoesia da rotina sufocante.
Convite ao suicídio.
Com direito a colação e canudo.
Pega o canudo, sorri pra foto e vai embora.
Pra gozar é mais caro.

 Para continuar respirando ou não, com a devida vênia,



Romantismo Brasileiro :
Módulo I:
Senhora, José de Alencar.


Ribalta do não ou um sim numa sala negativa.

 7/03/010  às 04:52 a.m.

















































































 

sexta-feira, 5 de março de 2010

Farejando

O niilista medroso

Ariosto Teixeira

Às vezes você se pergunta
Olhando o rosto no espelho
Se o reflexo é verdadeiro
Ou se a verdade é o corpo
Parado no meio do banheiro

Você acha que sabe bem o que é
Você acha que sabe bem o que quer
Você acha que sabe quem você é

Mas você sente medo
Medo de não ser você no espelho
Medo de ser mero reflexo
Do outro que consigo parece

Você não tem medo de sexo
Você gosta de sexo
Você sonha com sexo
Você procura fazer muito sexo

Sexo à distância
Sem beijo sem fluido
Higiênico e sem lirismo
Seguro como sexo com prostituta
Você de frente ela de costas
Ela por cima de costas
Você por baixo de costas deitado

É que você tem medo
Do ataque de um vírus complexo
Medo de gravidez
Medo de se apaixonar irremediavelmente
Medo de perder o controle
Medo de assumir o controle
Medo de que tudo enfim faça nexo

Você acende e apaga o cigarro
Com medo de pegar câncer de pulmão
Medo de apagar a luz
Medo de acender a luz
Medo de desligar o alarme
Medo de abrir o portão
Medo de ladrão policial pivete
Medo de colisão
De atropelamento
De ataque do coração

Medo de padre
Da certeza cristã absoluta
Da democracia liberal
Da esquerda latina
Medo da nova direita francesa
Medo do presidente americano
Medo da falta de medo do terrorista muçulmano
Medo de ser fragmentado por um raio da Al Qaeda

Medo da China capitalista
De milho transgênico
De buraco negro
De carne vermelha
Medo da falta de limite da física quântica
Do aquecimento global
Da inteligência artificial
De velocidade acima do permitido
De remédio de quinta geração
Da globalização
Do fim da globalização
Da falta de sentido

Medo de que Deus provavelmente não exista
De não haver outra vida
Você tem medo de ficar sozinho
Sem ninguém nem final feliz

Ah mas você confia no amor
O terno e doce amor
Do homem pela mulher
Do homem por outro homem
Da mulher por outra mulher
Do homem pelos animais
Da humanidade pela natureza
Você confia no amor das criancinhas

Você pensa nessas coisas
E por um instante
Acha que nada está perdido
Que o amor salvará o mundo
O amor romântico como no cinema
Como em um soneto de Shakespeare
Apesar da podridão no reino terrestre
Mas quanto tempo dura o amor
Antes de se dissolver em tédio
15 minutos uma tarde inteira uma noitada?

Você odeia sentir isso assim tão sentimentalmente
Mas é impossível ser de outro modo
É preciso agarrar-se a algo
Não ter medo de que o vazio
Tenha se espalhado em todos os quadrantes

O fato indiscutível é que você tem medo
Medo muito medo
De ficar vivo durante o inverno nuclear

Você principalmente tem medo
Do que um dia vai fazer
Quando ao anoitecer
O seu rosto tiver desaparecido do espelho do banheiro