domingo, 28 de março de 2010

A CRIATURA







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O tapete de lodo nicotizado estendia-se por todo ambiente. As fumaças embotavam os rostos e os odores que exalavam dos corpos incitavam excessos. Excessos, ela era dos excessos. Defendia a filosofia  segundo a qual pecar por excesso tornava o pecado mais sincero e talvez até a redimisse. Mas não, não queria que a redimissem do seu próprio grito, pois a cada pecado que cometia suplicava para ser ouvida ansiando para que algum dia alguém a revelasse, pois ela mesma tinha medo se olhar no espelho, por isso se pintava daquele jeito, como se estivesse se mascarando de si mesma.
Parecia que nessas noites de luxúria se transmutava e  tinha-se a impressão de que todos os seus atos eram minimamente arquitetados com os objetivos mais sórdidos em mente. A beleza exótica roçava cada linha do seu rosto de gueixa e do seu corpo deliciosamente brasileiro. Crua, não se poupava, sabia ser provocante despertando instintos que normalmente mascaramos para que a vida em sociedade seja possível, ao menos aparentemente. A língua ferina não perdoava ninguém. Ela possuía a tortuosa intimidade com  as palavras, e essa sina lhe tornava extremamente cáustica.Impossível não ser notada.
Poderia-se facilmente encontrar esse demônio tropical perdido em alguma página da mitologia ocidental, devorando seres impiedosamente e depois cuspindo suas carcaças sem vida. Ela, a síntese de requinte primitivo, uma das criaturas que a modernidade inventou.
O tapete de lodo nicotizado era seu palco. Todas aquelas criaturas febris, sedentas, hedonistas natas(ou fruto de mais algum experimento da modernidade)alimentavam sua fúria e ao mesmo tempo que sentia nojo por todas elas, o prazer de ser desejada devorava-a.
Devorava os seres no intuito de comer suas mentes, na esperança de juntar fragmentos que a ajudassem a entender a existência e assim se livrar da eterna angústia que a acometia. Era uma dor tremenda a do não ser. Latejante.
       Dos vícios humanos ela sabia quase todos, aqueles que escondemos até de nós mesmos com medo do buraco da fechadura. Mas não tinha medo, farejava todos os nãos das suas cobaias até lhes arrancar as tripas.E depois desse processo a dor que sentia era lancinante,chegava a pensar que sem cura.Por que ela sentia tanto pela sordidez da sua própria humanidade, não sabia explicar e aí que sentia mais dor.
        Durante o dia, os espelhos da sua casa eram retirados. Não suportava se ver sob a luz do sol, tinha vergonha do dia, era uma criatura forjada pela luz da lua e pela morbidez de um quarto escuro da suíte de algum hotel de luxo.
         Pensariam os hipócritas que essa é uma criação sórdida da minha mente de escritor arruinado,não se enganem , numa noite de vazio insondável, encontrei-a num café escolhendo uns livros, com tamanha paixão que desejei que o meu  estivesse perdido por ali para que ela o encontrasse.Desde então, frequento o mesmo lugar todos os dias na esperança de encontrá-la novamente, quem sabe não tomamos um café?

 Aysha Santiago 28/03/10 às 19:53

2 comentários:

  1. num tenho nem palavras, dispenso essas coisas de análise, não me sinto a vontade pra ficá destrinchando miudezas. a arte tem muitos mistérios, coisa que não dá pra ser desvelada sob a lente de um crítico ou de quem quer que seja - mas não sei, é que me comove de alguma forma as tuas palavras, sempre a fundo - por mais que sejam a expressão de um universo e de uma filosofia completamente distinta da minha, tua poesia sempre me atinge, fato. que mais posso dizê?

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  2. prefiro convivê com o mistério que é tua poesia pra mim!

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